terça-feira, 5 de maio de 2009

Entrevista MARIE CLAIRE

Leveza do ser

Por Lina de Albuquerque.
Foto: Márcia Ramalho


Insustentável, para a atriz carioca Natália do Vale, teria sido um convite para fazer uma personagem trágica nesse atual momento de vida. No final do ano passado, quando foi convidada para fazer a novela 'Mulheres Apaixonadas', pensou em recusar o papel. Sua mãe estava muito doente e ela tinha decidido passar o maior tempo possível ao seu lado. Por insistência da mãe, sua fã, acabou aceitando entrar na novela. E assim deu vida à impagável madame que trai o marido e tem um caso com o taxista que namora a sua empregada. O tempero do humor foi fundamental para a aceitação dessa personagem, que cresceu com o andamento da novela. Nas cenas em que o motorista desliga o taxímetro para se perder com Natália, é o marcador do Ibope que dispara. Nas ruas, é só aplauso. A atriz emprestou tamanha graça e leveza ao papel, que não recebeu nenhum sinal de desaprovação por parte dos telespectadores. 'A Sílvia é uma delícia', ela considera. 'É uma personagem tão cachorra que quase nem dá trabalho. Embora apareça pouco, a presença dela é marcante.' Atualmente, outra personagem cômica a acompanha também no teatro. Ela faz uma golpista na peça 'Capitanias Hereditárias', de Miguel Falabella. Ex-estudante de filosofia e professora de geografia nos anos 70, Natália do Vale conta nesta entrevista como demorou para mapear sua carreira de atriz. Fala da importância do ofício nos momentos difíceis da sua vida e da decisão de manter-se focada no presente. Aos 49 anos, sem filhos, foi casada duas vezes, uma delas com Paulo Ubiratan, diretor da Globo que morreu em 1998, vítima de infarto. Apesar de reservada com a vida pessoal, não esconde que é uma pessoa movida pela paixão.



Marie Claire Você tem resistência em dar entrevistas?
Natália do Vale Tenho certa dificuldade em lidar com a imprensa. A curiosidade a meu respeito incomoda um pouco. Não encaro com tanta naturalidade, não. Dá a impressão de que sou uma atriz tão importante, com uma carreira brilhante. Olha o peso, a responsabilidade disso.

MC: Esse antiestrelismo tem a ver com a sua formação?
NV: A verdade é que sou muito tímida e tenho medo de parecer pretensiosa.

MC: Pensou em ser outra coisa que não atriz?
NV: A vocação de atriz sempre esteve presente em minha vida. No colégio já fazia teatro amador. Mas venho de uma família de classe média que achava importante botar os filhos para estudar. Sou filha de portugueses [Amândio Nicolau do Vale, corretor de imóveis, e Sara Ferreira de Freitas, dona de casa] que imigraram para o Brasil em busca de um futuro melhor. Eles já tinham casado em Portugal; eu e o meu irmão nascemos aqui. Desde pequena sabia das dificuldades que enfrentavam. Acabei desenvolvendo um senso de responsabilidade fora do normal. Com 12 anos ficava pensando como os meus pais deviam se sacrificar para que os filhos estudassem. Sentia que precisava corresponder ao esforço deles. Eu estudava no Pedro II, um colégio forte. Não havia nem televisão em casa, porque meu pai achava que tirava a concentração nos estudos. Então era natural que fosse atrás de uma formação acadêmica. Eu queria ter a experiência de morar em outra cidade, fora do Rio, porque em casa me sentia um pouco presa. Entrei na faculdade de filosofia da Universidade de São Paulo.

MC: Foram difíceis os primeiros tempos em São Paulo?
NV: Quando cheguei, fui morar com a família de uma amiga no bairro do Cambuci e tomava três ônibus para chegar na USP. Depois mudei para Pinheiros e ficou um pouco mais prático. Mas até do cheiro da minha casa no Rio eu tinha saudade. Logo no primeiro ano, tive que me virar. Quem ia pagar os livros, as despesas com moradia? Precisei mentir para conseguir um bico de professora de geografia em um cursinho pré-vestibular. Disse que estava quase terminando a faculdade. Fazia aquele teatro todo e funcionava.

MC: Será que já era a manifestação do seu talento de atriz?
NV: A minha vocação certamente ajudou. Preparava bem as aulas, me arrumava e ia para a frente daquele palco fingindo ser uma grande conhecedora. Claro que sabia mais do que os alunos, mas a experiência era pouca e me sentia insegura.

MC: Foi uma fase passageira na sua vida?
NV: Pelo contrário, eu não queria sair da USP, tinha um vínculo emocional com a faculdade. Sentia que, no momento em que concluísse o curso universitário, uma etapa da minha vida estaria encerrada. A partir dali, seria uma adulta, o que não era assim tão fácil. Então, quando precisei fazer duas matérias optativas, fui em frente e fiz logo 11. Tive aulas de arquitetura e urbanismo na FAU, tupi-guarani na Letras... Estavam quase me expulsando da USP [risos] quando a televisão surgiu na minha vida.

MC: A televisão te salvou de uma carreira de eterna estudante?
NV: Mas eu nem sabia que seria a minha salvação [rindo]. Tomei conhecimento de um teste na TV Cultura para apresentar um telecurso, e passei. Como a emissora era pequena e eu ficava muito tempo lá dentro, acabei tendo contato com os atores de um programa chamado 'Teleteatro'. Foi assim que conheci o Walter George Durst, que me convidou para fazer uma peça dirigida por ele na tevê. Um dia o Walter me perguntou se queria fazer um teste na Globo, para a novela 'Gabriela' [1975].

MC: E você aceitou na mesma hora?
NV: Ih, relutei. Achava a Globo muito comercial. Eu me sentia mais segura por ali mesmo, numa emissora pequena. Mas o Walter insistiu, disse que eu participaria de apenas dez capítulos, fazendo uma carioca que chegava para trabalhar no cabaré baiano. O medo acabou estimulando a curiosidade e o desejo. Mal entrei no estúdio para fazer o teste, o Walter Avancini olhou para mim e disse: 'Fala'. Falar o quê, meu Deus? Estava preparada para fazer um teste, contracenar com um ator. A única solução foi tentar relaxar. Puxei um cigarro e comecei a falar meu texto. O Avancini cruzou os braços e me interrompeu: 'Vai fumar? Não sabe que cigarro é muleta de ator?'. Apaguei na mesma hora, o teste foi um horror.

MC: Mas você passou
NV: Porque acho que tive um insight. Ao me dar uma personagem carioca, o Walter queria facilitar a minha entrada na novela. Mas, no meio daquele teste insólito, achei que tudo estava mesmo perdido e perguntei se podia falar o texto com sotaque nordestino, para não destoar do resto do elenco. Era uma ousadia da minha parte. O resultado final saiu na hora: 'A personagem não vem mais do Rio, mas de Sergipe', ele falou. E assim nascia a 'Orora do Bataclan', feita para durar apenas dez capítulos, mas que ganhou mais 30.

MC: Demorou muito tempo para a carreira decolar?
NV: Fiz pequenas participações nas novelas e levei algumas portas na cara, então passei algum tempo me questionando se tinha talento. O reconhecimento veio só com 'Água Viva' [1980], do Gilberto Braga e Manoel Carlos. Fui para as capas das revistas, apareci no 'Fantástico'. Já no teatro, o divisor de águas foi 'A Partilha' [1990], de Miguel Falabella, que ficou seis anos em cartaz.

MC: A sua personagem em 'Mulheres Apaixonadas' é um marco de popularidade na sua carreira?
NV: Com certeza é uma personagem que está mexendo muito com as mulheres. A Sílvia está superando as minhas expectativas. Nessa novela, muitos fatores pessoais estiveram presentes. Recebi esse papel em um momento dramático da minha vida. Minha mãe teve câncer e eu sabia que ela não ia durar muito. Assim, queria ficar com ela o maior tempo possível. Só que eu tinha que trabalhar e já estava ensaiando uma peça com o Miguel Falabella ['Capitanias Hereditárias', atualmente em turnê pelo Brasil]. Foi barra, passei uma fase me revezando entre o hospital, a casa da minha mãe e o teatro. Em outubro, Ricardo Wadington e Manoel Carlos me convidaram para fazer a novela. Mas fiquei com medo de aceitar um novo desafio, me enrolar e não conseguir cumprir o meu dever de filha.

MC: Chegou a comentar o assunto com a sua mãe?
NV: A minha mãe era muito orgulhosa de mim. Ela já tinha perdido o filho [Antônio do Vale, cinco anos mais velho que Natália e seu único irmão] e o marido. Foi ela que pediu para eu aceitar a personagem. Disse: 'Faz sim, vou gostar de te ver de novo na tevê' [emociona-se]. É tudo muito recente. Ela não pôde me ver nem na televisão nem no teatro. Morreu no dia 12 de novembro, com 80 anos, na véspera da estréia da peça.

MC: Então você não foi à estréia no teatro?
NV: Minha mãe morreu às 9 horas da noite. Às 11 da manhã do dia seguinte foi o enterro. O Miguel disse que poderia cancelar a estréia. Mas naquela mesma noite eu decidi participar do último ensaio. Estreamos no dia seguinte, com a presença dos médicos que a acompanharam por mais de 30 dias. Eu me senti muito acolhida pelos amigos que compareceram. Acho que foi mais fácil ir ao palco, vestir uma personagem e fazer as pessoas rirem. Ficar só comigo seria uma dor insustentável. Também foi a forma que encontrei de fazer uma homenagem a minha mãe.

MC: Vocês eram muito próximas?
NV: Sim, eu era a única filha. O que me salvou, naquele momento, foi o meu ofício. E também as pessoas com quem convivia no teatro todos os dias, que me ajudaram a colocar o pé no chão.

MC: Sente falta de uma família?
NV: Família é aquela que a gente escolhe. Meu pai tinha quatro irmãos e a minha mãe, uma irmã. Eu só os vi uma vez na vida, porque eles ficaram em Portugal. A referência que tenho de família -de trocar presente de Natal, festejar o aniversário, estar junto na dor- está ligada ao meu segundo ex-marido, Vasco [Dias, executivo de uma multinacional, com quem esteve casada entre 1989 e 1995]. A minha ex-sogra é uma pessoa presente na minha vida, assim como a Renata, filha dele, que conheci com 5 anos e hoje tem 19. Com o Vasco, a relação sempre foi de companheirismo. Claro que não devia ser fácil para ele conviver com os meus compromissos. Eu fazia televisão e ainda viajava com a minha peça nos fins de semana. E ele era um empresário que tinha que acordar cedo todo dia. Foi por isso que, quando ele recebeu um convite para trabalhar em Londres, em 1991, achei que tinha chegado a hora de fazer uma concessão. Dei uma pausa de um ano para morar com ele na Inglaterra. A nossa relação merecia.

MC: É difícil terminar um casamento?
NV: Fui casada duas vezes, um casamento durou cinco anos [com o diretor da TV Globo Paulo Ubiratan, entre 1981 e 1986] e o outro, seis anos. É importante saber o momento de romper uma ligação, para ela não se tornar destrutiva. Quando uma relação acaba, a gente deve olhar para trás e festejar as coisas boas. Os casamentos que não dão certo merecem ser transformados em parcerias. A referência sexual deixa de existir, não os vínculos de afeto e cumplicidade. Tenho orgulho dos meus dois casamentos e também do modo como eles acabaram.

MC: Você não pensou em ter filhos?
NV: Não quis investigar os motivos físicos nem os psicológicos pelos quais os filhos não aconteceram.

MC: Sua personagem na novela te dá muito trabalho?
NV: Ah, sobra sim. Não gravo todos os dias. Uma coisa que adoro é desfrutar da companhia dos amigos. Amanhã mesmo vou preparar um camarão para receber duas amigas. Prefiro ficar em casa com meus amigos a ir para um restaurante. A gente fica mais à vontade, pode sentar no chão, rir, falar bobagem. Olha, a minha vida está tranqüila comparada a outros tempos. Em geral acordo às 8, tomo meu suco de clorofila, leio o jornal e vou para o estúdio. Levo uma comidinha de casa porque acho mais saudável.

MC: Os bons tratos incluem também ginástica e terapia?
NV: Não faço ginástica todos os dias, tenho preguiça. A média é três vezes por semana. Vinte minutos de esteira e uma hora de musculação. Acho chato, mas é uma necessidade. Já psicanálise eu fiz pouco, talvez dois anos. Depois de algum tempo, percebi que a cabeça da analista era mais torta do que a minha.

MC: A conduta da sua personagem poderia ser considerada 'torta' para uma novela das 8. Mas a Sílvia é só aplausos. ?
NV: Achei surpreendente a reação do público, especialmente levando em conta que o Brasil é um país machista. Até agora não senti nenhuma espécie de reprovação por ela estar traindo o marido e enganando a empregada. Ela exerce empatia em todas as faixas etárias. Um dia uma senhora de 70 anos me abordou no shopping e disse que estava torcendo fervorosamente pela Sílvia.

MC:
O que está ajudando nesta torcida, na sua opinião?
NV: O humor ajuda muito. Eu carreguei propositalmente no humor na hora de construir a personagem. A sua sensualidade e malícia estão pontuadas pela graça. É o que dá leveza a ela. Além disso, as pessoas percebem que a Sílvia não quer prejudicar ninguém, mas deseja ver todo mundo feliz. Ela é uma mulher chique e educada, que nunca perde a elegância. Mesmo quando desce nas pequenas perversões sexuais. Ela pode até se vulgarizar no layout, mas na essência se mantém uma mulher elegante.

MC:
Em que ponto a personagem começou a crescer?
NV: Fui apresentada à Sílvia como uma espécie de empresária do lar. A casa deve estar sempre arrumada, as flores muito frescas, a roupinha do marido organizada e assim por diante. Por outro lado, ela é uma mãe amorosa, que prioriza a felicidade da filha. Mas chega um ponto em que a filha casa e a sua missão parece cumprida. E agora, onde é que foi parar aquela mulher, seus desejos, inquietações? É aí que a sua história ganha repercussão.

MC: E a coadjuvante vira uma das personagens principais?
NV: O interessante é que ela realmente passa por uma transformação. E essa mudança vem através de um processo de libertação sexual. Ela usa o Caetano para se libertar. A Sílvia está buscando uma saída para um casamento falido, que não tem mais nada a oferecer. Nunca conversei com o autor da novela sobre isso. Mas li numa entrevista que ele a considera uma das personagens mais polêmicas da trama. Ele disse que não recebeu nenhuma carta pedindo para ela ficar com o motorista. Acho que a torcida não é pelo Caetano, mas pelo que ele representa. O espectador compreende que ele é apenas um veículo para a libertação daquela mulher.

MC: Você alguma vez recebeu um comentário mais inconveniente por parte de algum motorista de táxi?
NV: Tenho evitado um pouco pegar táxi [risos]. Uma vez, na saída do teatro, um motorista tentou puxar conversa, mas cortei educadamente. O fato do personagem ser um taxista é apenas uma coincidência. Ele poderia ser um entregador de pizza, um professor de ginástica. A Sílvia não tem nenhum fetiche pelo motorista, ela se sentiu atraída por aquele homem.

MC: Por quem você anda atraída ultimamente?
NV: Vamos saltar essa parte [risos].

MC: É que você revelou, numa entrevista, não conseguir viver sem se apaixonar.
NV: Sou uma pessoa movida pela paixão. Acho que, se o entusiasmo desaparece e a pessoa acha que já sabe tudo da vida, então está na hora de ir para outro lugar [aponta para cima]. Apesar de a idade ter me tornado mais sábia e generosa, sinto que ainda tenho muito para aprender. Eu me entusiasmo com os meus amigos e os meus namorados, graças a Deus.

MC: Acredita em Deus?
NV: Sou católica por formação. Mas me sinto mais próxima de Deus numa igreja vazia do que numa missa. A natureza também me aproxima de Deus. Sinto a presença divina quando contemplo o mar.

MC: Tem planos para o futuro?
NV: Não falo dos meus projetos antes de realizá-los. E também não gosto de fazer planos.

MC: Pensa em casar de novo?
NV: Como eu disse, não costumo fazer planos, muito menos esse tipo de plano.

MC: O que a vida te ensinou de mais importante nos últimos tempos?
NV:A vida me ensinou a manter o foco no presente. Não adio mais nada do que tenho que fazer.

MC: Alguma experiência motivou esse comportamento?
NV: Em 1993, quando eu apresentava 'A Partilha' em Recife, a minha mãe ligou dizendo que o meu pai havia sido internado. Ele tinha comido alguma coisa que ficou entalada e passou três dias no hospital. Ficamos no maior estresse porque achamos que o problema pudesse estar ligado a um câncer que ele teve na laringe. Mas não tinha nada a ver. Meu pai recebeu alta e dois dias depois, quando a peça já estava em João Pessoa, a minha mãe ligou para dizer que daquela vez era o meu irmão que estava no hospital. Ele teve um AVC [acidente vascular cerebral, conhecido como derrame] durante o banho. Fez duas cirurgias, mas não sobreviveu. Fiquei muito impactada. Naquela época, o meu irmão estava enfrentando dificuldades financeiras. Já tinha decidido ajudá-lo a comprar a sala do escritório, pagar o colégio do filho dele, o curso de inglês. Mas no meio daquela correria, indo de uma cidade para outra, não tive tempo de falar com ele. Queria que pelo menos ele soubesse da minha predisposição afetiva em ajudá-lo. Aquilo para mim foi uma lição. Prometi nunca mais me calar diante das coisas importantes, nunca mais adiar nada nem deixar de dizer tudo o que estou sentindo.


PRODUÇÃO: MARIA CÂNDIDA TEIXEIRA/CABELO E MAQUIAGEM: JESUS AGRADECIMENTOS: LE LIS BLANC

2 comentários:

Unknown disse...

Quanto mais sei de Natália mais a admiro.
As fotos do Blog estão lindas.

Vânia Macena.

            Lumineuse Ingrid Bergman       disse...

Eu estou maravilhada